Assinalamos que atrávés da iniciação e da atividade ritual propulsionada pelo àsé, os membros da comunidade vivem e aprendem progressivamente os princípios do sistema religioso, os valores e a estrutura do mundo do nagô. Os integrantes do culto recriam a herança sócio-cultural legada por seus ancestrais. As novas contribuições recebidas pelo culto são profundamente africanizadas, retendo, das idéias forâneas, unicamente as que reforçam sua própia concepção do mundo. Os nagôs concebem que a existência transcorre em dois planos: o àiyé, isto é, o mundo, e o òrun, isto é, o além. O àiyé compreende o universo físico concreto e a vida de todos os seres naturais que o habitam, particulamente os ará àiyé ou aráyé, habitantes do mundo, a humanidade. O òrun é o espaço sobrenatural, o outro mundo. Trata-se de uma concepção abstrata de algo imenso, infinito e distante. É uma vastidão ilimitada_ode òrun_ habitada pelos ara-òrun, habitantes do òrun, seres ou entidades sobrenaturais. Quase todos os autores traduzem òrun por céu (sky) ou paraiso (heaven), traduçoes que induzem o leitor ao erro e tendem a deformar o conceito em questão. Já dissemos que o òrun era uma concepção abstrata e, portanto, não é concebido como localizado em nenhuma das partes do mundo real. O òrun é um mundo paralelo ao mundo real que coexiste com todos os conteúdos deste. Cada indivíduo, cada árvore, cada animal, cada cidade etc. possui um duplo espirítual e abstrato no òrun; no òrun habitam pois todas as sortes de entidades sobrenaturais ou, ao contrário, tudo o que existe no òrun tem sua ou suas representações materiais no àiyé. Do que se antecede, deduz se largamente que a tradução de òrun por céu paraiso é o fruto de uma concepção insuficiente e de tendencia fôranea. Como assinala muito justamente Picton (1968:33) no que concerne a um grupo Igbira: mas não a idéia do céu, morada de Deus e das almas dos justos que é fôranea à crença tradicional Igbira. Os mitos revelam que, em épocas remotas, o àiyé e o òrun não estavam separados, A existência não se desdobrava em dois níveis e os seres dos dois espaços iam de um a outro sem problemas; os òrisás habitavam o àiyé e os seres humanos podiam ir a òrun e voltar. Foi depois da violação de uma interdição que òrun se separou de àiyé que a existência se desdobrou; os seres humanos não tem mais a possibilidade de ir ao òrun e voltar de lá vivos. Duas histórias, itàn, mantidas vivas pela tradição oral. contam a criação de Sánmò, o céu atmosfera, consequencia da separação do òrun. Uma delas conta, resumindo que, no tempo em que o òrun limitava diretamente com àiyé, um ser humano tocou indevidamente o òrun com as mãos sujas, o que provocou a irritação de Olórun, entidade suprema. Este soprou, interpondo seu òfurufú, ar divino (halito) que, transformando-se em atmosfera, constitui o sánmó ou céu. A segunda história é mais elaborada. No tempo em que o àiyé e o òrun eram limitrofes, a esposa estéril de um casal de certa idade appresentou-se em várias ocasiões a Orìsálá, divindade mestra da criação dos seres humanos, e lhe implorou que lhe desse a possibilidade de gerar um filho. Repetidamente Orisálá se tinha recusado a atende-la.Emfim, movido pela grande insistência, aquiesce ao desejo da mulher, mas com uma condição: a criança não poderia jamais ultrapassar os limites do àiyé.Por isso, desde que a criança deu seus primeiros passos, seus pais tomaram todas as precauções necessárias. Contudo, toda vez que o pai ia trabalhar no campo, o pequeno pedia para acompanha-lo. Toda sorte de estratagemas eram feitos para evitar que a criança acompanhasse o pai. Este saía escondido de madrugada. A medida que a criança ia crescendo, o desejo de acompanhar seu pai aumentava. Tendo atingido a puberdade, uma noite, eçle decidiu fazer um buraquinho no saco que seu pai levava todos os dias de madrugada e de por uma certa quantidade de cinza no fundo. Assim, guiado pela trilha de cinza, conseguiu localizar seu pai e o seguiu. Eles andaram muito tempo, até chegar ao limite do àiyé onde seu pai possuía suas terras. Neste exato momento, o pai apercebeu se que estava sendo seguido por seu filho. Mas este não pôde mais deter-se, atravessou o campo e, apesar dos gritos do pai e dos outros lavradores, continuou a avançar. Ultrapassou os limites do àiyé sem prestar atenção às advertências do guarda e entrou no òrun. Lá , começou uma longa odisséia no decorrer da qual o rapaz gritava e desafiava o poder de Òrisálá, faltando ao respeito a todos os que queriam impedi-lo de seguir seu caminho. Atravessou os vários espaços que compõem o òrun, veio cravar-se no àiyé separando-o para sempre do òrun, antes de retornar às mãos de Òrisálá. Entre o àiyé e o òrun apareceu o sánmó que se estendera entre os dois.O òfurufú, ar divino, é que separa os dois níveis de existência, o òrun do da vida. O èmi, a respiração, que diferencia um ará-àiyé- ser habitante do mundo- de um ará-òrun, ser habitante do além. Nas duas histórias que resumimos, o òrun, o além, residencia do sobre natural, é diferenciado do sánmó, a atmosfera, a massa de ar soprada por Òlórun. A palavra sánmó,indicando o céu-atmosfera fazendo par com a ilé, a terra, figura numa advinhação mito conecida na nígeria-yorubá,registrada igualmente por Abraham (1958; 625): mo s~u imi bààrá mo fi ewé bààra, trad: eu defequei excremento vasto, eu com folha vasta cobri. cuja a resposta é: ilé + sánmó, isto é , terra e céu; o excremento representa a terra ea folha que o recobre o céu. Temos assim dois pares de noções utilizados figuradamente de maneira extensiva: àiyé-òrun= mundo-além; ilé-sánmó= terra-céu. É comum referir-se à terra, como áiyé subentendendo-se que ilé, a terra, não compreende a totalidade do àiyé e que ao falar-se de òrun não se trata apenas do céu, mas de todo o espaço sobrenatural. O òrun é o doble abstrato de todo àiyé. òlórun, entidade suprema, o+ ni+ òrun, aquele que é ou possui òrun, não apenas um deus ligado ao céu como o pretendem certos autores, mas aquele que é ou possui todo o espaço abstrato paralelo ao àiyé, senhor de todos os seres espirítuais, das entidades divinas, dos ancestrais de qualquer categoria e dos dobles espirítuais, de tudo que vive. É, segundo esse conceito, que os mortos, oku-òrun ou awon ará ilé, habitantes da terra, espíritos da terra. As duas entidades sobrenaturais, que coletivamente representam os mortos e os ancestrais, Onilè e imolè, são representados por montículos de terra e é batendo ritualmente a terra que devem ser invocados os ancestrais a fim de que dela surjam e se manifestem.